O ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis) tem sido palco de litígios constantes nos últimos anos. A jurisprudência já se pacificou no sentido de que a base de cálculo deve corresponder ao valor real da transação, reconhecendo ao valor declarado pelo contribuinte a presunção de refletir o preço de mercado. Ainda assim, muitos municípios, sem qualquer motivação concreta, vêm arbitrando valores por meio de seus próprios fiscais de renda, em flagrante descompasso com a legislação.
Nessa prática, usurpam atividade privativa de peritos imobiliários, multiplicam a insegurança jurídica e obrigam, mais uma vez, os contribuintes a recorrerem ao Poder Judiciário.
Arbitramento: exceção convertida em regra
A legislação tributária dispõe que a autoridade administrativa poderá arbitrar a base de cálculo apenas quando as informações prestadas pelo contribuinte forem omissas ou não mereçam fé (CTN, artigo 148).
Ou seja, trata-se de medida excepcional e subsidiária, que demanda motivação específica e demonstração objetiva de inconsistências.
Não obstante, municípios como São Paulo vêm utilizando o arbitramento como regra, instaurando procedimentos sem qualquer indício concreto de subfaturamento, e baseando-se em “laudos fiscais” desprovidos de suporte documental.
O resultado é a desnaturação do instituto, que passa de mecanismo legítimo de combate à fraude para instrumento de abuso arrecadatório.
Afronta à coisa julgada
A situação torna-se ainda mais grave quando o arbitramento é instaurado em contrariedade a decisões judiciais definitivas.
Tem-se observado o aumento dessa prática em casos recentes de contribuintes que obtiveram decisões favoráveis transitadas em julgado, assegurando que a base de cálculo do ITBI deveria corresponder ao maior valor entre o declarado na escritura e o valor venal do IPTU.
Nesse sentido, se a declaração do contribuinte já goza de presunção legal, ainda que relativa, a declaração judicial a reforça.
Mesmo assim, a fiscalização municipal tem desconsiderado a ordem judicial e produzido unilateralmente laudos de avaliação para majorar a base de cálculo. A conduta viola a autoridade da coisa julgada (CF, artigo 5º, XXXVI; CPC, artigos 502 e 508), além de configurar tentativa de reabrir discussão já encerrada, em manifesta ofensa à segurança jurídica.
Usurpação da atividade pericial imobiliária
Outro vício grave e recorrente é a atribuição, aos auditores fiscais, da função de peritos imobiliários.
A avaliação mercadológica de imóveis é atividade privativa de engenheiros e corretores de imóveis inscritos no Crea ou no Creci (Resolução Confea nº 345/90; Resolução Cofeci nº 1.066/2007; NBR/ABNT 14.653).
Causa ainda mais espanto observar autoridades julgadoras administrativas convalidando tais arbitramentos ilegais mediante a afirmação de que o fiscal teria seguido normas técnicas.
Ora, da mesma forma que o fiscal não é o profissional habilitado para a avaliações imobiliárias, a autoridade julgadora tampouco detém competência para afirmar se as normas técnicas foram devidamente seguidas.
A situação é tão teratológica que equivaleria a um advogado afirmar que fez um atendimento médico correto, alegando ter seguido todos os protocolos de saúde, e outro advogado validar a suposta conformidade médica.
Ora, a possibilidade de arbitramento pela Fazenda Pública não equivale a uma autorização para que o próprio auditor fiscal o faça, mas sim à necessidade de buscar laudo técnico de um profissional habilitado, como ocorre em casos de classificação fiscal de mercadorias em que a Receita Federal recorre a especialistas.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por exemplo, já reconheceu que a revisão da base de cálculo do ITBI deve observar os critérios técnicos da NBR 14.653-2, os quais pressupõem atuação de profissional habilitado (Apelação nº 5012193-14.2023.8.24.0033; relatora: desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta, j. 1/4/2025).
Ainda, sob a ótica da isonomia processual, nada justifica que o contribuinte seja obrigado a contratar profissional habilitado para contestar um arbitramento, enquanto o Fisco se vale de laudos subscritos por fiscais sem habilitação técnica.
Inversão indevida do ônus da prova
Outra distorção grave dos procedimentos de arbitramento de ITBI é a tentativa de transferir ao contribuinte o encargo de provar que o valor declarado corresponde ao de mercado. Em muitos casos, a Administração limita-se a lançar dúvidas genéricas e exige que o particular apresente laudos técnicos particulares para “comprovar” a correção de sua própria declaração.
Tal postura afronta frontalmente a sistemática jurídica.
O ITBI se constitui, em regra, por lançamento por declaração (CTN, artigo 147): o contribuinte apresenta a escritura, indica o valor da transação e requer a emissão da guia. Compete, entretanto, à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento (CTN, artigo 142), decidindo se acolhe ou não os dados declarados. Assim, se houver discordância quanto ao valor informado, cabe ao Fisco apresentar os elementos concretos que justifiquem o afastamento da presunção de veracidade das informações prestadas.
É justamente o que prevê o artigo 148 do CTN, ao condicionar o arbitramento à demonstração de que as declarações do contribuinte são omissas ou não merecem fé.
O ônus de comprovar essa inidoneidade recai, portanto, sobre a Fazenda, e jamais sobre o sujeito passivo.
A regra geral do artigo 373, I, do CPC reforça essa lógica: incumbe ao autor do lançamento, a administração pública, o dever de provar o fato constitutivo de sua pretensão arrecadatória. Exigir que o contribuinte produza contraprova apenas desloca de forma ilegítima a carga probatória.
A jurisprudência não deixa dúvidas. O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento repetitivo citado acima, assentou que o arbitramento só é admissível diante de fundada dúvida sobre a veracidade dos dados declarados (REsp 1.104.900/ES, 1ª Seção, rel. min. Luiz Fux, j. 10/6/2009). O Tribunal de Justiça de São Paulo também vem reiteradamente reconhecendo que o arbitramento carece de motivação concreta, não bastando alegações genéricas de desconfiança (Apelação Cível nº 1028415-13.2023.8.26.0602, rel. des. Raul de Felice, j. 25/7/2025, e Apelação Cível nº 1044859-51.2025.8.26.0053, rel. des. Marcelo Theodósio, j. 9/9/2025).
Por fim, impor ao contribuinte o dever de contratar peritos privados para provar aquilo que já declarou regularmente viola as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (CF, artigo 5º, LIV e LV).
Essa inversão arbitrária transforma o contribuinte em réu permanente da Fazenda, fragilizando a confiança no sistema tributário e corroendo a segurança jurídica.
Freios necessários ao abuso
O arbitramento não pode se transformar em atalho arrecadatório. Quando utilizado fora dos limites legais, compromete a confiança no sistema tributário, viola a coisa julgada, desrespeita a repartição de competências profissionais e esvazia o devido processo legal.
Enquanto isso não ocorrer, o efeito será nefasto não apenas para os contribuintes, mas para todo o mercado imobiliário, que opera sob permanente insegurança jurídica. E sem segurança, o investimento produtivo, especialmente em empreendimentos de longo prazo, se torna cada vez mais caro e arriscado para quem deseja empreender no país.
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